Belfast: memórias agridoces para um conflito sangrento
Cultura XXI prossegue com uma série de postagens relacionadas aos Oscars, cuja cerimónia de premiação realiza-se a 27 de março. Depois de outros artigos disponíveis aqui, é a vez deste drama de Kenneth Branagh sobre a perspetiva infantil do início dos confrontos entre católicos e protestantes que dilacerariam a Irlanda do Norte por três décadas.
Muitos críticos andaram a implicar com o simpático “crowd pleaser” de Kenneth Branagh. Ele propôs aqui uma singela e emocional homenagem à sua cidade, apresentando-a sob alguns recursos estilísticos (a fotografia a preto-e-branco, uma câmera imersiva que pretende situar os espectadores como testemunhas privilegiadas dos acontecimentos) para passar uma perspetiva infantil dentro das violentas clivagens político/religiosas que dilaceraram a Irlando do Norte durante três décadas.
O centro da história são as perceções do menino protestante Buddy (Jude Hill), que vive as agruras e as delícias da infância em meio aos tormentos do mundo lá fora (as ruas barricadas, os ataques inimigos, a destruição de lojas) e os da sua casa – uma família à beira da rutura com as constantes ausências do pai (Jamie Dornan) e a luta da mãe (Caitriona Balfe) entre os dilemas financeiros e a pressão do marido para deixarem Belfast sem olhar para trás.
Os protestantes e os gângsters
O enfoque de Branagh é a análise da experiência individual e a forma como esta é afetada pelo exterior violento. Assim, fica numa órbita periférica as decisões políticas que afetam de forma dura a experiência da família que compõem o centro do enredo. Branagh não mostra os centros de poder e não foca no papel do governo de Londres e as suas forças “apaziaguadoras” – incontornável em intensos filmes irlandeses sobre o tema, como Sunday Bloody Sunday (Br: Domingo Sangrento)ou Em Nome do Pai.
E o que se descortina sob os olhos do menino são os primórdios do longo período dos “troubles” – o conflito que envolveu unionistas/realistas/protestantes, apoiantes da Irlanda do Norte dentro da Coroa britânica, contra os nacionalistas/republicanos/católicos que pretendiam o separatismo – e pelo meio carregaram um grupo terrorista (o IRA) que protagonizou os noticiários ao longo de décadas com os seus atos sangrentos.
Uma sintética exceção é a da personagem fundamental de Billy Clanton (Colin Morgan), um suposto e ameaçador líder protestante que diz ao pai de Buddy que “quem não está a favor da causa, está contra ela”. Neste momento, o cineasta deixa claro o que pensa sobre esse pretenso líder político das ruas através da palavras de Dornan, que lhe diz: “tu nem sequer és protestante. Sempre foste um gângster arrogante”.
Como essa história acaba
Assim, o drama de Brannagh é sobre os elos emocionais, mas também identitários (“nós, irlandeses, nascemos para partir”, diz alguém a certa altura) que ligam as pessoas “à sua terra” – e o peso da decisão de partir às custas da própria identidade. Sem exagerar no dramalhão, cria através de um personagem afetuoso (vivido por Ciaran Hinds, um dos avôs do garoto) uma bela história – ele próprio uma vítima fatal da imigração económica – a doença vinda dos anos de pulmões expostos nas minas de Leicester.
(Spoiler)
Para quem já viu o filme, tem graça saber como essa história continuou: segundo Branagh, não se encontrou um imediato paraíso na cidade de Reading, terra do famoso festival de “rock” a 60 quilómetros de Londres. Os irmãos sofreram “bullying” não só pelo sotaque, mas pelo facto de que muitos jovens ingleses eram retiradas das suas casas para combater no conflito irlandês. As coisas melhoraram para o futuro realizador quando, aos 16 anos, mudou-se para a capital e começou a trabalhar no teatro.
Mais sobre os filmes dos Oscars aqui.