Batman: um herói fragilizado para tempos adversos

Batman: um herói fragilizado para tempos adversos

Março 21, 2022 0 Por Roni Nunes
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Diário de Rorshach, 12 de outubro de 1985.

“Carcaça de cão no beco esta manhã, pneu pisado no estômago rebentado. Esta cidade tem medo de mim. Eu vi a sua verdadeira face.

“As ruas são sarjetas estendidas, elas estão cheias de sangue e quando os esgotos cicatrizarem, todos os vermes morrerão afogados.

“A sujidade acumulada de todo o seu sexo e os seus assassinatos irá espumar sobre as suas cinturas e todas as putas e políticos irão olhar para cima e gritar ‘salva-nos’.

“E eu olharei para baixo e sussurrarei… ‘não’”.

A abertura de um dos mais belos textos de super-heróis alguma vez escrito (Watchmen, Alan Moore, 1986) demonstra um “herói” cuja perceção filosófica angustiada procura explicar o mundo a partir dos seus vastos signos de imundície. Rorshach, ao contrário do seus ex-companheiros de uma espécie de Liga da Justiça odiada pelo mundo, é o único que continua na ativa: mascarado, percorre as ruas de uma grande cidade; impotente, descreve um mundo para além de qualquer possibilidade de redenção. Mesmo por um justiceiro. Cabe então a Moore, em paralelo com Frank Miller (O Cavaleiro das Trevas é de 1987) a lançar os super-heróis desfiladeiro abaixo.

Simulacros

Muitos anos depois, quando a Warner arrisca mais uma investida no único super-herói realmente interessante do cinema, Batman, cuja origem (a de Bruce Wayne, interpretado por Robert Pattinson) é bastante mais “privilegiada” do que a de Rorshach, filho de uma prostituta e crescido na imundície ultraviolenta do gueto, continua a tentar agir num mundo cuja grandeza ultrapassa a possiblidade do alcance do pensamento racional. Ele constata no início: Gotham é uma enorme cidade e ele não consegue estar em todo o lado. Usa então uma imagem, projetada no céu, que serve como pobre simulacro de um poder de onipresença que ele não tem. Batman é apenas humano; os seus poderes são a força física e a sua parafernália de apetrechos.

Não era para ser assim no mundo dos super-heróis. Estes sempre puderam fazer coisas que o comum dos mortais não podia: através de poderes mágicos, mantinham os criminosos no seu lugar, praticavam vinganças, alguns mandando piadinhas e saltitando, como o Homem Aranha. Num dos casos de particular omnipotência, o Super Homem de Chistopher Reeve, por exemplo, chegou a fazer um supersónico voo ao redor do planeta Terra para fazer a rotação retroceder e, assim, ter tempo de salvar a sua amada Lois Lane.

A morte do pai idealizado

Nada disto é possível aqui: Batman não é uma figura romântica (a tentativa desagradável do argumento em querer lhe imputar um romance com a Catwoman é lamentável e põe em risco a cuidadosa construção do personagem como um misantropo irremediável) e a sua orfandade serve para ajudar a definir aquilo que ele é: um justiceiro (no bom sentido da palavra) em crise, que não vê o resultado dos seus atos, (spoiler) que termina por não impedir o alagamento da cidade e que acaba por ensaiar uma perceção mais realista da façanha de “mudar o mundo” através de pequenas ações – como a retirada de crianças da água.

O que o motiva, no meio de uma orfandade que deixou o seu espírito em cacos e serve apenas para reforçar a sua solidão e desamparo, é um sentido de dever: apesar de órfão, é a sombra do pai que o move. O argumento (assinado pelo realizador Matt Reeves e Peter Craig) põe-lhe um especial desafio: a desconstrução da imagem do pai como alguém de moral questionável. Por outras palavras: sem esse pai idealizado, o que resta a Bruce Wayne/Batman?

Aberrações de Halloween

Ainda em relação a Watchmen, Batman não só dá continuidade a um mundo de super-heróis combalidos como profundamente desprezados pela sua própria sociedade. O homem-morcego é um “freak”, uma aberração e, não por acaso, o único dia onde ele não destoa é no feriado do Halloween.

O “off” com que Batman tenta explicar o seu mundo no primeiro terço (e o único que realmente importa) repete o artifício dos filmes “noir”; enquanto isso,  o visual com o qual Blade Runner já encantava os pessimistas pela mesma altura de Alan Moore, serve para encurralar o espectador de “blockbusters” entre a chuva gótica, onde a água raramente para de cair, e o sinistro distópico de um mundo sem luz, onde Goya poderia encontrar as desesperanças do século XXI aos sons dos melancólicos acordes de Michael Giacchino.

Um espectro no caminho

A canção principal, eventualmente escolhida entre o aleatório e o pragmático por alguém da produção, nada tem a ver com os ídolos do “pop/rap” contemporâneos, mas antes é uma daquelas amarguras de Kurt Cobain que lhe rendeu um grafite de homenagem embaixo de uma ponte de Aberdeen, a cidade onde nasceu no estado de Washington. Cobain não morou efetivamente, como acreditaram muitos, sob a ponte que menciona em “Something in the Way”, mas os seus “peixes sem sentimentos” e os seus “animais encurralados” correlacionam de uma forma sugestiva um ídolo morto na travessia do seu próprio propósito com um anti-herói.

A Warner, anti-heroísmo e reacionarismo

E o que dizer da  Warner, que patrocinou um anti-herói para o sistema do qual ela faz parte (o Anonymous de V de Vingança), para além da mais arrepiante analogia com o mundo de realidades paralelas no qual vivemos – Matrix? Talvez obedeça a estratégia inteligente de oferecer aos revoltosos a própria catarse – e assegurar a sua reação pacífica.

Para além disto, uma milionária produção de cinema não é uma história em quadrinhos/banda desenhada e onde o génio de Alan Moore sustenta até o fim um equilíbrio coeso de ação, poesia e filosofia (revolucionária): Batman perde-se nos seus clichés de filme-catástrofe e na sua duração excessiva – tornando-se num (mais um) grandiloquente espetáculo de moral política tão dúbia quanto a de Christopher Nolan quando transformou Batman num justiceiro que mete ordem na baderna depois da rebelião vencida pelos “sans-culottes” em O Cavaleiro das Trevas Renasce.

Mais ainda, o Charada/Enigma, o vilão do filme, até podia ter razão: os políticos mentem o tempo todo. Mas não é propósito da Warner fomentar a luta armada: Paul Dano acaba por se prestar a mais um doente mentecapto vítima da orfandade e cuja reação violenta contra o privilégio termina por ser obra de um lunático.