As memórias agridoces de um dos mais populares cineastas de sempre
Por André Gonçalves
Demorou a Steven Spielberg meio século de carreira, mas finalmente concretizou o “filme da sua vida”. Desde a primeira memória cinematográfica (com o visionamento de “The Greatest Show on Earth” de Cecil B. DeMille) até ao encontro meio anedótico com o seu grande ídolo da sétima arte, John Ford, “The Fabelmans” é uma obra madura e certinha que mostra como é que um dos realizadores mais bem sucedidos da indústria se formou.
Capaz de agradar tanto a académicos como a críticos e até arrancar reações do público mais casual, a película aparece-nos ainda assim um pouco em contramão na forma clássica como é estruturada: é que o futuro sombrio do cinema em sala que Spielberg já tinha desenhado à anos atrás, quando vaticinava que o cinema ia cada vez mais ser um espaço de diversões a preço “premium” e de catálogo mais limitado, é agora uma realidade pós-pandemia.
E a comprovar estão os resultados decepcionantes deste e de outros tantos filmes que fogem ao espectáculo visual da Disney e companhia… E o mais irónico é que Spielberg fundou em parte esse modelo do “blockbuster” moderno que viria depois a ser replicado por outros (James Cameron etc. ), e a ter direito a múltiplas salas de cinema em centros comerciais.
Drama familiar bem salpicado de momentos hilariantes, esta autobiografia reinventada acaba talvez por não revelar grandes choques para quem conhece bem a filmografia do realizador, dado que, em boa verdade, os seus filmes sempre tiveram um certo toque pessoal. Ajuda, sim, a olhar para trás e unir certos pontos entre ficção e realidade – nomeadamente nas obras marcadas por famílias disfuncionais, com um dos pais mais ausente – certamente um dos seus grandes traços autorais.
De resto, há aqui nesta carta de amor à sétima arte um testamento bem interessante ao poder que uma câmara pode ter em por um lado – o de capturar a verdade antes desta ser apreendida pelo olhar humano e, por outro, de formar uma narrativa fácil e potencialmente errónea de herói/vilão, isto é, de replicar uma verdade do criador que a usa.
“Os filmes são como sonhos dos quais nunca nos esquecemos”, diz-nos a matriarca do jovem artista logo no início (Michelle Williams, numa performance sumarenta repleta de altos e baixos, bem premiável), que se vem a revelar a grande defensora do talento artístico do filho.
“The Fabelmans” pode não ser um sonho tão inesquecível como queria ser e não escapa a um certo auto endeusamento do artista, mesmo que em modo auto irónico. Mas ficamos contentes por Spielberg finalmente ter tido a oportunidade de reinventar a sua história – no que aparenta ser também um momento terapêutico de catarse pessoal.