Artemisia Gentileschi: mulheres que decapitam vilões
Artemisia, a Artista Guerreira (de Jordan River), é um documentário disponível, a partir de 22/11, nas salas do UCI El Corte Inglés, em Lisboa.
Em tempos de recuperação da memória de mulheres que conseguiram contrariar os contextos históricos nos quais viviam, Artemisia Gentileschi é hoje reconhecida como um talento por direito próprio na constelação da pintura barroca, mas também sugerindo algumas curiosas leituras retrospetivas de alguns dos seus quadros mais intensos e famosos.
Nascida em Roma, em 1598, teve apoio do pai (Orazio Gentileschi) para o seu talento artístico – e pôde frequentar livremente o cenário efervescente da famosa Via Margutta, ainda hoje um icónico local histórico da capital italiana. Conheceu pessoalmente Caravaggio: Para a sua infelicidade pessoal, também cruzou-se com Agostino Tassi, amigo do pai e que acabaria por violá-la na ausência deste – quando era suposto ensinar-lhe técnicas de perspetiva.
A violação, que mereceu uma descrição pormenorizada pela artista nos autos do processo, levou a um doloroso julgamento que não excluíram a tortura sobre a própria vítima! Ainda que a agressão tenha passado aos cânones, suas circunstâncias e interpretações têm estado em acirradas polémicas – especialmente entre as feministas e historiadores do período.
Artemisia conseguiu sempre circular entre os grandes da Itália: depois do casamento às pressas com um pequeno pintor, esteve em Florença e pôde ser a primeira mulher a frequentar a Academia de Desenho – possivelmente pela amizade com o Galileo Galilei. Também foi o grande cientista quem intercedeu por ela na corte dos Médici, os mais famosos mecenas desde a Renascença: a pintora ainda teria diversos quadros encomendados.
Mulheres que decapitam vilões
Artemisia não foi a única pintora a conseguir romper as barreiras da sua época – onde não era esperado que as mulheres fossem artistas. As suas obras, no entanto, têm merecido diversas interpretações que singularizam o seu olhar feminino sobre temas que outros pintores do período também abordavam.
“SUSANA E OS ANCIÕES”
Tema muito utilizado na época, servindo tanto a inspiração bíblica vinha do Livro de Daniel – e relatava a história de dois pérfidos anciões que espiavam a jovem Susana no banho – fazendo-lhes propostas sexuais. Diante da recusa destas, estes resolvem injuria-la – terminando por serem desmascarados. Essa é a primeira pintura de Artemisia reconhecidamente sua – embora tenha sido apoiada pelo pai em termos técnicos. Onde ele não auxiliou foi no aspeto mais conceitual: mais do que outras recriações da história na altura, a artista romana criou uma Susana fortemente incomodada pela ação dos dois homens, utilizando as mãos não para tapar-se, mas para esboçar uma espécie de defesa de uma agressão sexual.
JUDITE DECAPITANDO HOLOFERNES
Sem dúvida um dos quadros mais emblemáticos de Artemisia, o qual teve ainda outra versão não muito diferente. Partindo de um tema já utilizado num trabalho com o mesmo nome de Caravaggio, em 1598, a pintora partiu para uma versão mais gráfica e violenta de outra história bíblica. Neste caso, trata-se de Judite, mais um dos exemplos da virtude feminina, que em vista da eminente destruição da sua cidade pelo general assírio do título, seduz-lhe com a sua beleza para induzi-lo a um torpor alcóolico. Quando acorda, tem a espada de Judite sobre o pescoço.
Para muitos e, embora a história fosse tratada por outros pintores, é óbvia a associação com a história da violação de Artemisia – que usou-se a si própria como modelo e permitiu-se uma furiosa redenção pessoal. Ainda assim, essa não é única interpretação para o quadro – o qual, ainda assim, incomodou o suficiente o seu mecenas, Cosimo de Médici, para que este mantivesse o quarto inacessível até a sua morte. Aparentemente, Artemisia nem sequer foi paga pelo seu trabalho. Em JAEL E SISERA (foto de abertura), o tema bíblico é semelhante. Em ambas as pinturas, os homens são semelhantes ao odiado Agostino Tassi – o qual, alegadamente, teria servido de modelo para os quadros…