“Aftersun”, a grande coqueluche do “cinema indie” de 2022

“Aftersun”, a grande coqueluche do “cinema indie” de 2022

Fevereiro 4, 2023 0 Por admin
Partilhar

Por André Gonçalves

Charlotte Wells pega num objeto apenas – uma câmara de filmar – e sobre ela projeta as suas memórias pessoais em duas personagens (semi) ficcionadas, de acordo com a própria: um pai e uma filha – e um possível último verão juntos. Pegar num tema pessoal traz sempre o risco de estar a falar sobre si só para si. 

A surpresa maior de Aftersun, e o que o ajudou a ser um dos filmes mais estimados do ano transato um pouco por todo o lado, entre críticos e espectadores, foi precisamente percebermos como uma memória tão concreta se pode converter num filme tão universal, com o qual nos identificamos independentemente da nossa situação familiar de então ou mesmo independentemente de termos alguma vez pegado numa câmara de filmar em férias de verão. 

Antes desta parafernália de ecrãs com câmara e de filmagens puramente acessórias a retratar a realidade mais banal, havia uma empresa gigante entretanto caída que popularizou a expressão “momento Kodak”: um momento para nunca mais esquecer e, portanto, passível de ser fotografado para esse efeito. O melhor elogio a fazer a esta primeira longa-metragem da realizadora é que efetivamente esta história mereceu ser capturada em câmara para a podermos levar conosco e revisitar sempre que pudermos. 

Um pai (Calum) e uma pré-adolescente (Sophie) viajam para um “resort” na Turquia no final dos anos 90. Estas são memórias capturadas e posteriormente revistas no presente, onde se pode presumir que a parentalidade entretanto adquirida pela jovem então pré-adolescente tenha disparado o rastilho sobre o que filmou então e sobre o que o seu pai poderia estar a passar. 

Mas o que se estava efetivamente a passar nesse verão? Wells tem aqui a decisão acertada de não apresentar o contexto/diagnóstico completo deste pai, que aqui e ali vai revelando as suas fragilidades – mesmo que isso resulte numa performance mais internalizada de Paul Mescal que o costume dentro do “isco para Oscar” (felizmente foi nomeado, deixando de fora outros suspeitos do costume). E é nessa ambiguidade tão saudável sobre a doença mental, nessa fugacidade da vida e das memórias filmadas, que o filme mergulha com a confiança de uma mão veterana. 

Talvez tanta personalização tenha ajudado a cineasta a demonstrar o seu tratado sobre a memória com tal segurança. Talvez. Mas se uma obra deve valer por si e não pela promessa do que pode até não vir a seguir, e se a vida em si é para tentar ser vivida no momento para que não se fique apenas a martelar pelo que devia ter sido dito ou feito no passado, então Aftersun merece toda a atenção do presente.

Cobertura dos Oscars 2023 aqui.