A melhor homenagem a Bogdanovich: à conversa sobre “The Last Picture Show”
Morreu hoje (06/01) um dos grandes cineastas e cinéfilos americanos, Peter Bogdanovich. Das melhores homenagens que se podem prestar a um homem que amava o cinema é uma conversa sobre uma das suas grandes obras. Assim, The Last Picture Show, que completou 50 anos em 2021, mereceu do crítico Duarte Mata* uma análise brilhante.
Peter Bogdanovich foi mais um dos talentos saído do laboratório de Roger Corman, que concedia uns parcos tostões e condições áridas a novatos para que se lançassem na sétima arte. Depois de aproveitar tais ofertas com maestria (Targets, de 1968), Bogdanovich saltou para um dos seus filmes mais consagrados e mais queridos de toda a Nova Hollywood.
O filme debruça-se sobre a vida de uma pequena cidade do Texas, onde jovens vivem praticamente sem nada para fazer e onde perpassa um vazio existencial e uma melancolia que percorrem os diferentes personagens.
No centro está Sonny (Timothy Bottoms), cujo melhor amigo é Duane (Jeff Bridges), que circula com a sua volátil namorada, Jacy (Cybill Shepherd). A galeria destaca ainda um sorumbático “pilar” da comunidade, Sam the Lion (Ben Johnson), a deprimida mãe de Jacy (Ellen Burstyn) e a desconsolada amante de meia-idade de Duane, Ruth (Cloris Leachman).
Mais do que nostálgico / sentimental essa “última sessão de cinema” mostra um grande vazio existencial – tal como em Targets, onde um jovem saía a dar tiros na estrada sem nenhum motivo aparente… Aqui parece mais um fenómeno coletivo, onde ninguém parece ter um particular entusiasmo pelo mundo que o circunda…
Acho que, mais do que qualquer vazio existencial, a origem dos tiroteios de Targets tinha raiz numa patologia psíquica que deixava claro como o verdadeiro horror poderia estar na casa ao lado por trás de um rosto sorridente, e não num ecrã branco sob várias camadas de maquilhagem.
No que toca a The Last Picture Show, é um vazio existencial palpável, advindo de uma pequena cidade que não oferece futuros promissores aos seus habitantes. O futuro dos velhos é a morte, o dos jovens é ser velhos, e no meio está a rotina feita de dead-end jobs monótonos e sexo desapaixonado.
É aqui que ganha a importância da personagem de “Sam the Lion”, sendo, definitivamente, o alicerce moral daquela comunidade, mas também a figura sapiente de outro tempo que recorda a importância das pequenas coisas possíveis de encontrar nesse ciclo de vida merencório: um encontro com uma rapariga de quem verdadeiramente se gosta, um jogo de bilhar, um café com os amigos, uma sessão de cinema.
De alguma maneira, sendo por meras conversas ou pela gestão de vários estabelecimentos, Sam está por trás de cada uma destas coisas. Ou, como alguém diz: “se não fosse pelo Sam, seria uma daquelas pessoas que acharia que jogar bridge era a melhor coisa que a vida poderia oferecer.”
Quando Sam veda ao grupo de rapazes os espaços de que é dono, dá o maior castigo possível naquela comunidade: sem esses espaços, resta só a rotina esvaziada de qualquer propósito. Sam é, por isso, quem aparenta trazer vida àquela cidade, e a sua morte é também a cessação do batimento cardíaco dela.
Todas as vivências de afetividade e sexualidade são desconfortáveis – cercadas de medo, inépcia, traição ou simplesmente falta de desejo…
Uma das coisas mais singulares do filme passa por isso mesmo: pelo tratamento da sexualidade. Aqui, a roupa entala-se ao ser despida, a “tenda não fica armada”, lágrimas de ansiedade correm. Não são cenas românticas nem eróticas, mas apenas desajeitadas e até mesmo dolorosas, refletindo a inexperiência dos seus intervenientes no campo da intimidade física.
A justificação mais fácil para estes retratos está na idade dos protagonistas, o facto de serem novos e atravessarem as descobertas que marcam o fim da inocência. Porque o filme, para além de abordar o fim do Velho Oeste e o fim de uma era cinematográfica antes da generalização da TV, é também sobre esse fim. Mas dizer isso é cair num reducionismo abusivo que ignora a caracterização psicológica e o “background” de cada personagem.
Por exemplo: Jacy, a personagem de Cybill Shepherd. Sim, ela também é jovem como Duane e Sonny, mas, ao contrário destes, ela olha para a intimidade física egoisticamente, como um meio de conquista de estatuto individual, tratando os homens como meros veículos para o seu amadurecimento sexual, danificando-os involuntariamente no processo.
Ou então, pondo os jovens de lado, Ruth, a dona de casa deprimida e quarentona, cujo marido não lhe dá qualquer atenção: a sua cena íntima com Sonny é tão denunciadora de inexperiência quanto qualquer outra com casais em idade primaveril, o que sugere o desapego conjugal naquela casa e a falta de proximidade entre o seu marido e ela. Em suma, creio que seria possível delinear uma caracterização completa das personagens mais importantes de The Last Picture Show partindo exclusivamente das suas cenas íntimas.
Estilisticamente, Bogdanovich filmou a preto-e-branco, filma ruas vazias e ventosas, contrastando com alguns momentos de nostalgia à beira de um lago. Como acha que este universo visual se interliga com os personagens e as suas pequenas histórias?
É um caso onde forma e conteúdo estão modelarmente sintonizados. Há a sensação de vazio que advém de todo o tratamento estético do filme: a grande profundidade de campo para filmar as paisagens (quase) desertas das ruas, o preto-e-branco lúgubre, a atmosfera melancólica…
A impressão provocada é a de estarmos diante uma cidade abandonada com pessoas lá dentro. E é essa sensação de abandono, solidão e alienação que percorre as histórias individuais das suas personagens, as quais aprenderam ou aprenderão que não se pode esperar muito daquele sítio nem umas das outras.
Ainda nesta linha de pensamento, os momentos visuais mais discutidos do filme são as panorâmicas com que este abre e encerra. Já muita tinta correu sobre elas, mas acho que ninguém o fez melhor do que Luís Miguel Oliveira na sua folha de sala a Texasville: “Por oposição ao ‘travelling’, em que a câmara ‘perfura’ o espaço e de certo modo o vence, a panorâmica, mera rotação da câmara em torno do seu eixo, é um movimento em que toda a liberdade é ilusória: o espaço circundante permanece inatingível, a sensação de uma claustrofóbica imobilidade impõe-se.”
Mas há também uma outra panorâmica, não muito discutida. Ela ocorre no interior da sala de aula, filmando os rostos juvenis que lá estão, enquanto um poema de Keats, Ode on a Grecian Urn, é declamado. O poema aborda a velhice, as transições geracionais e a unificação entre verdade e beleza.
À primeira vista, parece uma cena funcional para demonstrar o aborrecimento dos alunos pela matéria escolar, mas a panorâmica acompanhada pelo poema na banda sonora diegética dá uma sensação de transitoriedade inescapável. Tal como a sala de cinema fechará, também aqueles rostos envelhecerão, perdendo a beleza imaculada da juventude, e, por conseguinte, a sua verdade (ou a sua inocência), tornando-se em reflexos das gerações mais velhas desencantadas que ali habitam.
Bogdanovich, tal como outros mestres da Nova Hollywood (Coppola, De Palma, Scorsese, para citar alguns) compõe uma primeira geração saída de universidades de cinema e conscientes da história pregressa deste… Em termos estilísticos, como acha que ele dialoga com os mestres do passado neste filme em particular?
Ao contrário dos seus contemporâneos, Bogdanovich estudou representação com a Stella Adler, tendo sido isso o mais perto que esteve de uma universidade. As aulas de cinema dele foram os filmes que devorava com uma fome pantagruélica, as entrevistas aos cineastas do cânone americano enquanto escrevia para a Esquire e, o mais importante, as semanas em que trabalhou com Roger Corman na produção de Wild Angels, onde fez de tudo um pouco – escrita de argumento, “location scouting”, segunda unidade, montagem…
O percurso de Bogdanovich esteve, portanto, menos próximo do dos seus conterrâneos do que aquele por que passaram os cineastas da Nouvelle Vague – embora, ao contrário deles, Bogdanovich fosse mais um historiador do que um crítico – tendo ainda o acrescento de uma componente prática intensiva.
Há uma entrevista da época em que Bogdanovich afirma: “Eu não julgo o meu trabalho com base no dos meus contemporâneos… Eu julgo o meu trabalho com base nos dos realizadores que admiro – Hawks, Lubitsch, Buster Keaton, Welles, Ford, Renoir, Hitchcock.”
Poderá ser uma citação demonstrativa de algum egocentrismo do realizador, mas é também reveladora da reverência que nutria pelos clássicos e a ambição de se provar merecedor da linhagem cinematográfica que venera. É a antítese de uma outra atitude da época, aquela representada por Dennis Hopper, que disse, embriagado, a George Cukor, segundo Peter Biskind em “Easy Riders Raging Bulls”: “Vamos enterrar-te. Vamos tomar conta disto. Estás acabado”.
Ou seja, Bogdanovich repudiava o desprezo que alguns dos seus contemporâneos tinham pela Hollywood clássica, tanto as suas figuras como as convenções estéticas. Os outros tinham os olhos no futuro, ele tinha os seus no passado, e foi nele que encontrou a sua linguagem cinematográfica.
Tudo isto para dizer que, em The Last Picture Show, há uma dialéctica permanente: o seu formalismo é clássico, mas o tratamento dos temas é moderno. A composição dos planos, o uso da profundidade de campo, a atmosfera visual, tudo isto deve bastante à Hollywood clássica (sobretudo a John Ford), mas a nudez, a presença semi-explícita da sexualidade, a história “character-driven” e não “plot-driven”, coloca-o perfeitamente alinhado com a Nova Hollywood. E acredito que seja essa dialéctica que faça de The Last Picture Show um filme neoclássico.
Nesta linha, há um óbvio gosto pelas citações e, neste caso, citam-se particularmente três filmes – “The Father of the Bride” (Minnelli), “Winchester 73” (Anthony Mann) e “Red River” (Hawks). É possível relacionar estas escolhas com o que se passa no filme?
Winchester 73 reflete, evidentemente, a idolatração dos rapazes pelo Velho Oeste. O uso de The Father of the Bride é mais interessante: Sonny vai vê-lo e, no fundo da sala, começa aos beijos com a namorada. No entanto, enquanto isso decorre, ele está mais interessado em contemplar a atriz da tela (Elizabeth Taylor) do que em prestar atenção à companheira. Mas depois chega Jacy e senta-se à frente dele, desviando totalmente o olhar de Sonny sucessivas vezes, como se ela fosse a materialização possível da beleza de Taylor naquela cidade. E, claro, a rapariga que verdadeiramente despoleta o interesse de Sonny.
Sobre Red River, tenho a interpretação do próprio Bogdanovich. Na entrada sobre Howard Hawks de “Who the Devil Made It”, o seu livro de entrevistas a alguns dos maiores cineastas, Bogdanovich escreve: “No meu segundo filme, eu precisava de um excerto de um western para pôr no ecrã, e usei o do início da movimentação do gado de Red River por causa do seu sentido de optimismo e aventura em contraste com a esqualidez que se havia abatido sobre o Texas.”
É uma questão de contraste, portanto, e que se prolongará para depois deste momento. Poucas cenas após esta sessão, irá ocorrer o atropelamento do miúdo retardado da aldeia por uma carrinha transportadora de gado bovino. Bogdanovich coloca um plano subjectivo de Sonny a olhar para as vacas após o trágico acidente, como se estivesse a confrontá-las com aquelas que surgiam em Red River. No presente, o transporte de vacas está completamente desprovido de entusiasmo cinematográfico porque a liberdade dos prados deu lugar a prisões levadas por motores.
No entanto, esse excerto de Red River mostra também outra coisa: a continuação geracional de um legado. Montgomery Clift ocupará o lugar de John Wayne naquela missão de transportar o gado pelo país. E Sonny dará meia-volta, de regresso à cidade, quando decide partir abruptamente dela no final: mais tarde ou mais cedo, terá de ocupar o lugar de Sam the Lion como souber.
* Duarte Mata é crítico e colaborador do site A Pala de Walsh.