“UMA NOITE DE CRIME”: 7 ASPECTOS DE CRÍTICA SOCIAL QUE CELEBRIZARAM O PRIMEIRO FILME
O quinto capítulo da franquia (“The Forever Purge”) estreia em julho de 2021 um pouco por todo lado. Tudo começou há oito anos, quando uma ideia sugestiva do argumentista/realizador James DeMonaco revelou-se plena de possibilidades para uma franquia de terror. O projeto ganhou ainda mais fôlego nas bilheteiras quando Ethan Hawke alinhou – tornando “Purge” (“purga”, no original) em mais uma daquelas franquias altamente lucrativas dados os baixos custos de produção.
O filme trazia elementos comuns a muitos filmes de terror – nomeadamente o artificio da história de cerco, célebre desde “The Night of Living Dead” (Pt/Br “A Noite dos Mortos-Vivos”) – o clássico de George Romero com o qual “Purge” sintonizava-se (um único cenário, uma luta de sobrevivência, o elemento negro/alienígena no seio da família branca, a forma como o exército de vilões marcha em direção à casa/refúgio). Mas enquanto o filme de Romero tornava-se apocalíptico e revelava-se como um retrato de desintegração de todos os tipos de laços, deMonaco, através da personagem gradualmente simpatética de Hawke, transforma-se numa luta mais convencional em defesa da família.
CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL
A história girava em torno de James Sandin (Hawke), um vendedor de sistemas de segurança altamente bem-sucedido, e sua família, composta da esposa Mary (Lena Headey) e um casal de filhos adolescentes, Zoey (Adelaide Kane) e Charlie (Max Burkholder). O produto que vendia, pelo menos para quem o pudesse comprar, era particularmente apetecível no dia da “purga”, onde todas as restrições legais eram levantadas para qualquer tipo de crime. A ideia dos Fundadores, entidade vaga que aludia ao Estado, era de que tendo um dia para expulsar a sua fúria, o resto do ano seria marcado pela paz.
A graça do filme reside numa série de elementos de crítica política e social, com flertes distópicos, que se relacionam com aspetos diversos do mundo do século XXI – um centro de poder político indeterminado, o ódio encapsulado e apoio da população de partidos extremistas. Tudo isso embrulhado num filme de ação e terror. Ou como sintetizava Ethan Hawke na altura do lançamento, “quem quer ver um filme sobre a violência das armas e questões de classe na América? Mas se você situar essas questões num aterrador e divertido passeio de montanha russa, você pode falar sobre o que quiser”.
1 O CONCEITO DE PURGA
“Purge” segue uma longa tradição das histórias terroríficas que mexem com a dualidade do ser humano. Essa noção implica no reconhecimento de sua faceta destrutiva e uma das primeiras e mais célebres fantasias a evocar o tema foi “Dr. Jekyll & Mr. Hyde”, que Robert Louis Stevenson lançou no final do século XIX.
Com a ciência em grande ascensão na altura, Stevenson imaginou que este lado negro pudesse eventualmente ser tratado quimicamente. É o que o seu protagonista, um sóbrio cavalheiro durante o dia (Jekyll) que transformava-se numa besta assassina (Hyde) depois de ingerir um “preparado”, tenta fazer.
Mas Jekyll era um solitário que enfrenta a desconfiança dos seus pares quando tenta convencê-los desta ideia. Em “Purge” essa é uma noção coletivamente adquirida e, pelo menos por quem dita as regras, uma sólida crença. Fora isso, o discurso dos “fundadores” no filme é praticamente o mesmo: “a história tem provado repetidas vezes, somos uma espécie ontologicamente violenta. Guerras, genocídios, assassinatos. Negarmos a nossa natureza é o problema”.
2 A CATARSE PELA VIOLÊNCIA
Em “Purge” não há nenhuma solução “científica” para o problema do instinto avassalador de destruição. O que se entende como solução é, pura e simplesmente, liberar a selvajaria durante 12 horas por ano – nos quais assassinatos, violações e crimes diversos estão liberados. Por outras palavras, qualquer restrição à liberdade individual está liberada e cada um pode “expurgar e purificar as suas almas”. Na mesma linha, “as ruas ficarão vermelhas quando as pessoas libertarem a sua raiva em números recordes”.
O endereço da crítica do filme é claro: o fetiche americano pela violência. Ethan Hawke aludia a isso na altura do lançamento, quando disso que a própria noção de patriotismo numa parcela da população “yankee” era composta por uma vertente militarista e agressiva. Por isso, o filme repete frases como “América renascida” e “obrigado pelo sacrifício pela América“.
3 OS EXCESSOS DO CAPITALISMO
Sandin, o representante da burguesia indiferente e individualista, lucra enquanto milhares de pobres perecem. Ele é um apoiante entusiasmado da “purga” – na medida em que ela própria sustenta o seu alto padrão de vida. Num momento comemora que está a pensar em comprar um barco.
Como o filme indica, mais do que catarse também pode estar envolvidos algo mais pragmático: “a eliminação do pobre, do carente, do doente (…) a erradicação dos chamados membros não contribuintes da sociedade”. Eles “não têm dinheiro para se proteger. Eles serão as vítimas hoje”.
4 HIPOCRISIA SOCIAL
O ódio mora ao lado. O bairro rico onde Sandin vive, onde também forneceu o sistema de segurança aos vizinhos, vai se revelar também desejoso de uma noite de purga. Todas os disfarces sociais encapsulados podem vir à tona e transformar-se em crueldade extrema – especialmente no final, onde Mary protagoniza uma cena verdadeiramente catártica.
5 O VERNIZ DA CIVILIDADE
Muitos filmes de terror abordaram o tema do “verniz da civilidade” – aquela a fina camada que estala sob pressão e liberta a selvajeria. No cinema de terror (e não só) os anos 70 foram pródigos em catárticas vinganças e atrocidades explicitas.
No início dos 70s “The Last House on the Left” (pt: “A Última Casa à Esquerda” / br: “Aniversário Macabro”), o primeiro filme de Wes Craven (mais tarde célebre por “Nightmare on Elm Street” e “Scream”), tinha praticamente a mesma abordagem de “Purge” (a família encerrada em casa que luta pela sobrevivência contra vilões), mas, curiosamente, mais incómodo e realista, na medida em que não há nenhum sentido de valor para a violência. De qualquer forma, a família tem de pôr mãos à obra em nome da sobrevivência…
6 O INCÓMODO DA SOLIDARIEDADE
Se no universo de darwinismo capitalista de Sandin há pouco espaço para pensar nos demais, dentro do universo da “purga” a solidariedade não é só inexistente como perigosa – despoletando todos os problemas enfrentados pela família. O filho Charlie e, mais tarde, Mary, vão representar a conceção de deMonaco à sobrevivência da noção mínima de civilidade – da consciência e da injustiça e da possibilidade de redenção.
7 A QUESTÃO RACIAL
Enquanto em “A Noite dos Mortos-Vivos” a seleção de um ator negro (Duane Jones) para o papel principal foi mais fortuita do que simbólica, em “Purge” é óbvia a ideia de que as pessoas de cor continuam desprivilegiadas e elementos de suspeita. Parte do suspense do filme vem da figura de Edwin Hodge, o intruso que é o elemento de suspeita e a vítima preferida da turba que espera lá fora e refere-se explicitamente a ele: a verve “redneck” do líder dos vilões, liderado pelo carismático Rhys Wakefield: “não queremos os nossos iguais”.